Relato do Encontro de Outono de 2017: patriarcado, mistérios das deusas sumerianas e egípcias



“[...] em relação aos símbolos: eles não se referem a eventos históricos; eles se referem, através de eventos históricos, a princípios espirituais ou psicológicos e forças de ontem, hoje e amanhã, e que estão em todo lugar” (CAMPBELL, 2015, p.86).

O segundo encontro do ano promoveu a continuidade do estudo voltado para o mais recente livro lançado em português do mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904- 1987). Trata-se de Deusas: os mistérios do divino feminino (editora Palas Athena, 2015).
O encontro realizado na cidade de Cotia, São Paulo, contou com a participação da psicoterapeuta Ana Maria Galrão Rios que abordou e desenvolveu aspectos relacionados aos capítulos três, O Influxo Indo-Europeu, e quatro, Deusas Sumérias e Egípcias da obra de Campbell.
Aprofundando a temática, Rios apresentou sua dissertação de mestrado, concluída em 2008, intitulada Um estudo junguiano sobre a imagem de Deus das crianças num contexto cristão. O trabalho foi desenvolvido com alunos do ensino fundamental e médio e buscou observar a imagem de Deus nas crianças de diferentes faixas etárias (RIOS, 2008).
De antemão a palestrante aponta para as relações entre a construção da imagem do Deus Judaico/Cristão com a construção da imagem concebido pelas crianças. O Deus Judaico/Cristão é aquele que cria o ser humano a partir de seu desejo e que possui uma relação com sua criação demonstrando raiva, bondade, amor, tristeza ou até mesmo punindo.
A imagem de um Deus participativo é construída no imaginário infantil nos primeiros anos de vida conforme as relações que as mesmas desenvolvem com seus pais. Sendo assim, Deus é representado como benevolente, bravo, amoroso ou não, perante a imagem e semelhança que as crianças possuem de seus pais.
Rios afirma que o cérebro humano vive sobre um imperativo cognitivo (imperativo semelhante ao desenvolvido pelo filósofo do século XVIII Immanuel Kant), ou seja, os humanos sempre buscam saber e explicar os fenômenos. Não importa a complexidade da explicação, o cérebro cria um enredo e, se necessário, um mito para preencher as lacunas.
Na concepção da palestrante, os mitos que acreditamos moldam a forma com que nos relacionamos com a vida desde os primórdios.
A construção da imagem de Deus é concebida em crianças de forma distinta conforme cada idade. Segundo a pesquisadora, elas passam por quatro ciclos arquetípicos do desenvolvimento: matriarcal,  patriarcal, de alteridade e cósmico.
No ciclo matriarcal a criança se percebe como centro, não somente do próprio mundo, mas do mundo enquanto tal.  Deus é construído à imagem da criança e, portanto, é um Deus que brinca (FIG.1).

Figura 1: Deus que brinca
Fonte: RIOS, 2008

                       

O ciclo patriarcal é responsável por fixar o símbolo do divino no imaginário da criança. Valores como ordem, disciplina, autoridade e justiça se manifestam nos desenhos; as imagens e símbolos se fixam e codificam conforme os padrões culturais onde a criança está inserida (FIG.2).
Figura 2: Jesus crucificado
       Fonte: RIOS, 2008

 
A percepção da existência e importância do outro ocorre no ciclo da alteridade. Nele, as escolhas são baseadas não apenas no próprio sentimento, mas também no sentimento do outro (FIG.3). Um exemplo desse ciclo são as festas de aniversários organizadas pelos próprios adolescentes (12-14 anos), que enfrentam dificuldades em convidar amigos e deixar de fora alguns colegas devido aos conflitos que naturalmente permeiam grupos nessa faixa etária.

Figura 3: Deus branco e negro, consciência e compreensão das diferenças
Fonte: RIOS, 2008
  
É por meio do ciclo cósmico que as polaridades transcendem e há uma percepção de tudo como um todo único que está em permanente mutação.

 
Figura 4: Jesus Cristo rezando por todos
Fonte: RIOS, 2008

                                        

Rios aponta para a importância de se compreender que tanto o patriarcal, quanto o matriarcal possuem pontos positivos e negativos. A polaridade negativa se apresenta quando há um uso excessivo dessas características.
Inanna, deusa da Suméria
Fonte: Pinterest
O ciclo patriarcal, por exemplo, age segundo um futuro previsto, sendo aquele que defende, cuida e que é justo, o que garante a ordem e a lealdade. É por meio do patriarcado, portanto, que há leis que garantem a sobrevivência da espécie humana, permitindo uma organização que favorece toda a sociedade.
Em contrapartida, o matriarcal funcionaria melhor em pequenos grupos já que seu interesse está relacionado à pertinência, continência e sobrevivência.
Nessa perspectiva, o feminino em um sistema patriarcal abusivo pode ser posto em condição de submissão para sobreviver. No entanto, apesar das mulheres não possuírem dentro desse sistema uma representação do sagrado de forma direta, a pesquisadora adverte que representações recorrentes a Deusa sempre existiram e estão presentes.
Casamento sagrado: Isis como uma ave de rapina sobre
Osiris morto no mito da geração de Hórus 
Abordando as representações da Deusa no capítulo quatro, Deusas Sumérias e Egípcias da obra de Campbell, Ana comenta os mitos de Inanna, Isis e Maat. Interpretando as narrativas pela perspectiva da psicologia analítica, a palestrante lembra que Inanna e Isis estão relacionadas ao mito do casamento, enquanto Maat à justiça.
Como afirma Ana, o masculino e o feminino são polaridades encontradas em todos os seres humanos e o abuso de um sistema, seja qual ele for, é prejudicial.
Maat, a deusa egípcia
da Justiça: pena como símbolo
As narrativas míticas são encontradas em todas as partes, nas palavras da psicoterapeuta Ana Maria Galrão Rios: “Os deuses vão nos visitar através dos símbolos” e para Joseph Campbell (1904- 1987): “[...] quando o masculino entra, há divisão, ao passo que, quando o feminino entra, cria-se a união” (2015, p.122). Mas é somente quando ambos estão em relação que há a possibilidade de alteridade e, no vocabulário da psicologia analítica, transcendência, no sentido dialético de a soma das partes ser maior que o todo.

Por Vanessa Heidemann


Referências

CAMPBELL, J. Deusas: os mistérios do divino feminino. São Paulo: Palas Athena, 2015.

RIOS, A. M. G. “Um estudo junguiano sobre a imagem de Deus das crianças num contexto cristão”. 2008. 256 f. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em:



Comentários