“Certa vez li sobre uma antiga maldição chinesa:
‘Que você renasça numa época interessante!’ A nossa época é uma época muito
interessante: não há modelos para nada do que está acontecendo. Tudo está
mudando, mesmo a lei da selva masculina. É um tempo de queda livre para dentro
do futuro, e cada um ou cada uma deve criar seu próprio caminho. Os modelos
antigos não estão funcionando, os novos não apareceram ainda. De fato, nós
mesmos é que estamos modelando o novo segundo a forma de nossas vidas
interessantes. Joseph Campbell
Ao iniciar um
novo ciclo de estudos acerca das narrativas míticas, contamos com a presença da
psicoterapeuta Leda Maria Pirillo Seixas, professora do curso de Psicologia na
Faculdade de Ciências da Saúde da PUC-SP.
Nesse primeiro
encontro de 2017, foram discutidas as três primeiras partes (introdução,
capítulo 1 e 2) do livro do mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1904-
1987), lançado em 2015 em português no Brasil pela editora Palas Athena, Deusas: os mistérios do divino feminino (CAMPBELL, 2015)
Com o desenvolvimento
das sociedades modernas e da tecnologia, os mitos são muitas vezes tidos como algo
que permaneceu no passado, como histórias ou mentiras. Esse tipo de interpretação
privilegia uma visão que tende a excluir os mitos do contexto dos estudos das
narrativas nos dias atuais. Contudo, nas palavras da professora Leda Seixas,
eles apenas mudaram de face.
Segundo ela, existem
exemplos atuais de mitos que ainda norteiam a nossa existência, como a ciência,
a política e a economia, que podem ser considerados os novos deuses poderosos
que estão presentes em nosso cotidiano.
Assim, abordar o
masculino e o feminino em nossa sociedade pode ser tarefa complexa, já que o
papel de ambos passa por transformações. Entre os povos primevos, ancorados
numa perspectiva mais biológica, existia uma clara distinção de cada um desses
arquétipos, visto que o homem era aquele que caçava, sustentava e protegia,
enquanto a mulher era a que transformava. Essa noção era baseada no corpo da
mulher, tido como mágico, pois que “repentinamente” dava origem à uma nova vida.
Isso porque não havia ainda a compreensão da importância do papel do homem
relacionado à reprodução.
O corpo feminino,
então, era associado à terra, às cavernas, aos mistérios do nascimento, da morte
e do renascimento. Não por acaso, os primeiros cultos ao feminino estavam
voltados para questões de vida e morte.
Carl Gustav Jung
(1875-1961), pai da psicologia analítica, desenvolveu uma abordagem baseada nos
arquétipos do feminino e masculino, onde a Anima
é entendida como o princípio feminino no inconsciente do homem e o Animus o princípio masculino no inconsciente
da mulher. Segundo a professora, desde então essas noções propostas por Jung
estão sendo ampliadas e desenvolvidas por outros especialistas do campo.
A própria
psicoterapeuta sugere tentar compreender essa dualidade por meio da direção ou
forma de energia, onde o princípio masculino representaria o Logos, ou seja, a razão e a objetividade,
e o princípio feminino o Eros, não no
sentido sexual, mas de relação entre as coisas, de conexões.
Ao longo da
evolução histórica, sobretudo nas últimas décadas, o papel social da mulher se
transformou devido às guerras – que levou à diminuição dos homens na sociedade,
possibilitando às mulheres trabalhar fora de suas casas – e ao avanço
tecnológico, da pílula anticoncepcional ao desenvolvimento dos eletrodomésticos,
que liberou a mulher de muitas funções relacionadas à manutenção da casa e da
família.
Para Leda Seixas,
o primeiro movimento da mulher na sociedade moderna foi o de competir com o
homem para conseguir um lugar na sociedade – processo que levou as mulheres a
imitarem o comportamento masculino. Segundo ela, hoje “não possuímos mais
parâmetros. Os papeis tradicionais foram rompidos e, ao mesmo tempo em que isso
é interessante, é muito difícil, já que cabe a cada um tentar descobrir o que
fazer com sua própria vida”.
Nesse contexto,
a professora afirma que há uma evolução de comportamento e que a partir de
agora as mulheres devem passar a tentar buscar mais sua essência feminina e a forma
que elas podem contribuir com sua feminilidade para com o mundo. Isso porque a imagem
e a força do arquétipo do feminino permanecem.
Além disto, existiram
mitos que incluem outras variações dessas imagens arquetípicas, como o do
hermafrodita. Um desses mitos é relatado por Platão (428/427 - 348/347 a.C) em
sua obra O Banquete (PLATÃO, 1991), por meio do diálogo de
Aristófanes que explica como esses seres seriam originalmente. Segundo Platão, tratava-se
de seres duplos e esféricos, que possuíam dois pares de cabeças, quatro pernas
e quatro braços. Eles seriam divididos em três sexos. Um seria constituído por
duas metades masculinas (os filhos do Sol); outro por duas metades femininas
(as filhas da Terra); e o terceiro seria andrógino, metade feminina, metade
masculina (os filhos da Lua).
Como se voltaram
contra os deuses, a fim de acabar com sua intemperança e arrogância Zeus cortou-os
em dois, dividindo-os. Esse mito explicaria a eterna necessidade das pessoas de
buscarem uma completitude no outro, bem como a nostalgia do tempo em que o
feminino e o masculino teriam vivido em comunhão, em totalidade.
Quando
questionada sobre esse mito ser a representação da eterna busca pela ´tampa da
panela´, a professora adverte que os mitos apontam para além do aspecto racional:
“O mito não é uma expressão literal da realidade, pois ele se expressa de uma
maneira simbólica”.
Para finalizar,
Leda Seixas lembrou que o “feminino é um todo que é multifacetado”. Assim, a mulher
é associada ao mistério, à mágica e à natureza. Por isso, mesmo no contexto
contemporâneo que privilegia os valores do masculino, a mulher deveria se
voltar para si mesma para reconhecer toda a sua força. Para ela, a “sabedoria
da coruja está em ser coruja”, frase que leu na lousa da escola primária e
nunca mais esqueceu.
Texto: Vanessa Heidemann, mestranda do Programa de Comunicação e Cultura da Uniso.
Texto: Vanessa Heidemann, mestranda do Programa de Comunicação e Cultura da Uniso.
Referências
CAMPBELL, J. Deusas: os
mistérios do divino feminino. São Paulo: Palas Athena, 2015.
PLATÃO. Diálogos: o banquete, Fédon, Sofista, Político. 5. ed. São
Paulo: Nova Cultural, 1991.
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